O dia em que saber contar histórias me ajudou nas aulas de perfumaria natural

Acredito que muita gente tenha passado pela mesma situação recentemente, de avaliar a vida que vinha levando até pouco antes de imergirmos nesse caos da pandemia. Eu passei pelas minhas divagações por aqui também e algo que me veio com muita clareza foi que gostaria de criar condições para que no médio/longo prazo (falo de me imaginar daqui uns dez anos) pudesse passar mais tempo envolvida com atividades sensoriais, sem, no entanto, abandonar totalmente as intelectuais. Coincidentemente, li em algum lugar que o Eduardo Galeano, um autor uruguaio que admiro muito, disse uma vez que o que interessa realmente é a sabedoria que conecta o cérebro com as tripas. Pronto! Estabeleci algumas conexões necessárias para avançar nesse projeto pessoal.

Comecei a prestar mais atenção nos hábitos que tinha há tempos, como o de fazer alguns dos cosméticos que eu mesma uso, como desodorantes e óleos corporais, usando produtos naturais e óleos essenciais para chegar a produtos que cumpram suas funções a ainda tenham cheiros que me agradam e eu simplesmente não encontrava prontos.

Alguns amigos que foram presenteados com as minhas criações ao longo do tempo passaram a usá-las também e gostaram muito, a ponto de pedir bis. E para mim…nossa! É uma atividade que me traz um prazer imenso. Eu posso passar horas em estado de plena satisfação, flow total, descobrindo novas combinações de fragrâncias ou testando novas matérias-primas para chegar a uma nova textura para os meus produtos. Não estaria ali um indício de algo a fazer para me colocar mais em contato com esse lado sensorial e, de repente, também ser uma fonte de renda futura?

Sem muito apego à ideia de necessariamente transformar essa habilidade em negócio, comecei a procurar cursos para me aperfeiçoar naquilo que vinha fazendo. Eu sempre parto do princípio de que conhecimento nunca é demais. Dessa forma, me matriculei em um curso de cosmetologia natural e em um de perfumaria natural, já que o aspecto fragrante das minhas criações sempre foi importante para mim e motivo principal pelo qual comecei a trabalhar nos meus próprios produtos.

Ambos foram experiências maravilhosas e lapidaram muito meu olhar para essa atividade. No curso de perfumaria, calhou de ser uma turma formada majoritariamente por químicos, engenheiros químicos e farmacêuticos, que dominam questões de moléculas, componentes alérgenos e outros assuntos técnicos muito melhor do que eu. No entanto, um aspecto muito destacado pela professora Angélica Flores sobre a criação de perfumes foi o lado criativo, a inspiração. Em uma das atividades, foi solicitado aos alunos que inventassem uma história e, a partir daí, desenvolvessem a fragrância, trazendo os óleos essenciais que melhor se encaixassem na narrativa, fazendo o trabalho refinado de harmonizá-los, dentro do conhecimento que tínhamos até então, evidentemente.

A minha história foi a seguinte:

Nome do perfume: Sem máscara

História:

Essa é uma fragrância para uma mulher que mal pode esperar por um mundo sem máscaras. Ela quer voar, sair por aí seduzindo todo e qualquer ser vivo que cruza seu caminho: o bebê no carrinho que se lambuza na sorveteria explorando prazeres inimagináveis ao velhinho que contempla serenamente o pôr do sol no banco do parque. O distanciamento social ficou para trás e ela é grata em primeiro lugar pela sobrevivência e, logo em seguida, pela chance de ter focado em si para ouvir seus desejos mais íntimos e sair desse período com muita clareza do que quer e, não menos importante, do que não quer mais levar consigo.

O perfume é um souvenir dos desafios desse tempo em que cheirar também era sinônimo de resistir. Desperta os sentidos lembrando que agora é momento de ser luz. E isso não é só sobre brilhar, mas também sobre iluminar.

Sem máscara é o novo nude. Da alma. Originado nas profundezas inexplicáveis do sistema límbico, feito com um coração vibrante deslocado para a ponta dos dedos, criado gota a gota especialmente para essa mulher que tem sede de vida ao ar livre e calor humano.

Trata-se de um floral especiado com destaque para o exótico jasmim, que por si só enche o ambiente de beleza, mas ganha alegria, dança, movimento e um toque de ternura na companhia do sensualíssimo ylang-ylang. A laranja-doce dá o tom radiante e solar enquanto a bergamota abre a fragrância com sua luminosidade peculiar e cheia de frescor. Uma misturinha de cardamomo e pimenta-rosa traz aquele ar envolvente e de mistério, representando o frio na barriga causado pela simples imaginação das aventuras que vêm pela frente no mundo pós-pandemia. Fava Tonka, patchouli e ho wood formam uma base suavemente doce e reconfortante para essa mulher que acolhe, mas, sobretudo, se escolhe. É hora de sair de casa. 

PS: Lembre-se de que quem te cheira, te ajuda a nascer. De novo.

Isso não é muito mais legal do que dizer que o perfume criado é um floral especiado, com destaque para o bouquet de flores brancas, no caso, jasmim e ylang-ylang, com notas de cardamomo, pimenta-rosa, fava tonka, patchouli, ho wood, bergamota e laranja-doce?

O episódio me mostra que como perfumista ainda sou uma excelente redatora (na avaliação olfativa, a professora disse que tiraria a laranja-doce e carregaria mais na bergamota 😬), mas, veja que interessante: a proposta do exercício é pura combinação de sensorial com o intelectual que tanto vinha buscando.

Saber contar histórias é uma habilidade valiosa, que me salva até no contexto de uma aula de perfumaria natural, uma área de interesse nova, de longo caminho a percorrer caso queira levar adiante os planos de me aperfeiçoar. Pelo que entendi, vai ser de grande serventia carregar esse conhecimento prévio na minha paleta de aprendiz de perfumista.

Ah, e eu já estou criando essa nova realidade. Dê uma espiada no Instagram @cheimelier.

Texto originalmente publicado no LinkedIn Pulse da Ana Carolina Barbosa, sócia e diretora criativa da Cabrun!